De sílabas de letras de fonemas
se faz a escrita. Não se faz um verso
Tem de correr no corpo dos poemas
o sangue das artérias do universo.
Cada palavra há-de ser um grito.
Um murmúrio um gemido uma erecção
que transporte do humano ao infinito
a dor o fogo a flor a vibração.
A Poesia é de mel ou de cicuta?
Quando um Poeta se interroga e escuta
ouve ternura luta espanto ou espasmo?
Ouve como quiser seja o que for
fazer poemas é escrever amor
e poesia o que tem de ser é orgasmo.
José Carlos Ary dos Santos
quinta-feira, 1 de maio de 2008
Ao Joãozinho
Breve reflexão sobre este estranho hábito instalado de partilhar questões pessoais:
O meu pai, como os pais de quase todos nós, aqueles que não tinham dinheiro para ir para a Argélia, voz para cantar no metro de Paris, ou mérito academicamente reconhecido para prosseguirem os seus estudos universitários via bolsa (perceba-se, gente humilde com parcos recursos financeiros), acabavam necessariamente com os costados em África e, com alguma sorte, regressavam no Niassa, dois anos depois, com “recuerdos” de gosto duvidoso e a incerteza de um futuro pouco ou nada auspicioso, num país que até então os tinha tratado como matéria descartável num conflito absurdo ao serviço de um regime caduco e criminoso.
Hoje em dia, a nível científico, as análises microeconómicas, feitas pelos mais reputados economistas, são feitas tendo como base experiências pessoais, de duvidosa credibilidade, de criteriosa intencionalidade e flagrante falta de respeito por aqueles que ontem, como hoje, buscam na procura do primeiro emprego a dignidade que é suposta e inerente à condição humana.
Partindo destes “estudos empíricos”, parece que a precariedade foi invenção do antigo regime e que a queda da cadeira foi tão fatal para Salazar como para o, já extinto, trabalho precário. Estes estudos são como os M&M’s, o problema de fundo é o mesmo mas o revestimento pode ser da cor que mais nos aprouver.
Parece que antes do 25 de Abril a procura de emprego era de uma complexidade só comparável à de um algoritmo de matemática avançada, a não ser que tivéssemos o curso geral do comércio, tivéssemos prestado provas para o saudoso Banco Nacional Ultramarino, ficássemos entre os cinco primeiros classificados, fossemos chamados para África, tivéssemos entrado em pânico com medo de desperdiçarmos aquilo que era chamado à época o “emprego de uma vida”, regressássemos passados dois anos, telefonássemos para o BNU com a esperança de uma promessa feita e ingressássemos na instituição dois dias depois de entrar no cais, mesmo sem um curso superior que, diziam na altura, seria o livre-trânsito para uma vida desafogada.
Claro que ainda não testámos o complexo algoritmo. Vejamos agora a difícil situação de um licenciado em gestão, com média de 16 que, após diligências várias, períodos de grande frustração pessoal e permanente busca de uma vocação, quase espiritual, tão transcendente como o dia em que deixou de acreditar no pai natal, teve que se resignar e, acreditem se puderem, abraçar a docência universitária e rumar a terras de sua majestade para realizar o pior dos pesadelos: doutorar-se! (só me apetece chorar, mas a verdade é que nem todos temos a sorte de ir parar com os costados a África, trabalhar no BNU e ter uma reforma de merda, após 40 anos de trabalho efectivo).
Testemos agora o duvidoso algoritmo, restringindo-nos à situação actual. Segundo a última aplicação do mesmo à realidade portuguesa, não existe motivo para alarme.
Modernidade é também sinónimo de: flexibilidade, insegurança e precariedade; recibos verdes e avenças; ausência total de dignidade; intromissões na vida pessoal; retaliações de índole política; atentados à liberdade de expressão; negação do direito à indignação e à greve; total ausência de regalias; despedimentos sumários; pressões psicológicas no local de trabalho; discriminações sexuais e raciais; horas extraordinárias não remuneradas; deslocalizações selvagens que jogam para a rua milhares de trabalhadores; fusões, aquisições, falências fraudulentas e desmantelamentos mal explicados que, certamente, favorecem grandes grupos económicos, cuja gratidão, silêncios e cumplicidades tácitas, fazem corar de vergonha o menos puritano indivíduo que rouba a caixa de esmolas da aldeia.
Enfim, nem todo o alfabeto deste mundo comporta tanta manipulação; ludibriar trabalhadores tornou-se nos dias que correm mais uma área específica de estudo, que com acérrimo afinco pode até ser uma componente de empreendorismo, instigado pelas mais altas patentes do país.
Em jeito de despedida, e como sabemos que o Joãozinho tem dificuldades em adormecer desde que lhe foi contada a história do dragão, esclareçamos o seguinte:
Existe a crença generalizada que o conhecimento, a formação, a educação, o gosto por uma aprendizagem versátil, dinâmica e abrangente e a diversificação das áreas de estudo, não servem unicamente para dificultar uma entrada no mercado do trabalho que tem, cada vez mais, necessidade de formação afunilada.
Para além de ser consensual que uma pessoa mais esclarecida é também um ser humano com maior consciência dos seus direitos e dos seus deveres, podemos assegurar que é também alguém que tem certezas absolutas sobre a não existência de dragões.
Podes dormir descansado João, o único monstro que provavelmente irá atacar será a tua consciência…
O meu pai, como os pais de quase todos nós, aqueles que não tinham dinheiro para ir para a Argélia, voz para cantar no metro de Paris, ou mérito academicamente reconhecido para prosseguirem os seus estudos universitários via bolsa (perceba-se, gente humilde com parcos recursos financeiros), acabavam necessariamente com os costados em África e, com alguma sorte, regressavam no Niassa, dois anos depois, com “recuerdos” de gosto duvidoso e a incerteza de um futuro pouco ou nada auspicioso, num país que até então os tinha tratado como matéria descartável num conflito absurdo ao serviço de um regime caduco e criminoso.
Hoje em dia, a nível científico, as análises microeconómicas, feitas pelos mais reputados economistas, são feitas tendo como base experiências pessoais, de duvidosa credibilidade, de criteriosa intencionalidade e flagrante falta de respeito por aqueles que ontem, como hoje, buscam na procura do primeiro emprego a dignidade que é suposta e inerente à condição humana.
Partindo destes “estudos empíricos”, parece que a precariedade foi invenção do antigo regime e que a queda da cadeira foi tão fatal para Salazar como para o, já extinto, trabalho precário. Estes estudos são como os M&M’s, o problema de fundo é o mesmo mas o revestimento pode ser da cor que mais nos aprouver.
Parece que antes do 25 de Abril a procura de emprego era de uma complexidade só comparável à de um algoritmo de matemática avançada, a não ser que tivéssemos o curso geral do comércio, tivéssemos prestado provas para o saudoso Banco Nacional Ultramarino, ficássemos entre os cinco primeiros classificados, fossemos chamados para África, tivéssemos entrado em pânico com medo de desperdiçarmos aquilo que era chamado à época o “emprego de uma vida”, regressássemos passados dois anos, telefonássemos para o BNU com a esperança de uma promessa feita e ingressássemos na instituição dois dias depois de entrar no cais, mesmo sem um curso superior que, diziam na altura, seria o livre-trânsito para uma vida desafogada.
Claro que ainda não testámos o complexo algoritmo. Vejamos agora a difícil situação de um licenciado em gestão, com média de 16 que, após diligências várias, períodos de grande frustração pessoal e permanente busca de uma vocação, quase espiritual, tão transcendente como o dia em que deixou de acreditar no pai natal, teve que se resignar e, acreditem se puderem, abraçar a docência universitária e rumar a terras de sua majestade para realizar o pior dos pesadelos: doutorar-se! (só me apetece chorar, mas a verdade é que nem todos temos a sorte de ir parar com os costados a África, trabalhar no BNU e ter uma reforma de merda, após 40 anos de trabalho efectivo).
Testemos agora o duvidoso algoritmo, restringindo-nos à situação actual. Segundo a última aplicação do mesmo à realidade portuguesa, não existe motivo para alarme.
Modernidade é também sinónimo de: flexibilidade, insegurança e precariedade; recibos verdes e avenças; ausência total de dignidade; intromissões na vida pessoal; retaliações de índole política; atentados à liberdade de expressão; negação do direito à indignação e à greve; total ausência de regalias; despedimentos sumários; pressões psicológicas no local de trabalho; discriminações sexuais e raciais; horas extraordinárias não remuneradas; deslocalizações selvagens que jogam para a rua milhares de trabalhadores; fusões, aquisições, falências fraudulentas e desmantelamentos mal explicados que, certamente, favorecem grandes grupos económicos, cuja gratidão, silêncios e cumplicidades tácitas, fazem corar de vergonha o menos puritano indivíduo que rouba a caixa de esmolas da aldeia.
Enfim, nem todo o alfabeto deste mundo comporta tanta manipulação; ludibriar trabalhadores tornou-se nos dias que correm mais uma área específica de estudo, que com acérrimo afinco pode até ser uma componente de empreendorismo, instigado pelas mais altas patentes do país.
Em jeito de despedida, e como sabemos que o Joãozinho tem dificuldades em adormecer desde que lhe foi contada a história do dragão, esclareçamos o seguinte:
Existe a crença generalizada que o conhecimento, a formação, a educação, o gosto por uma aprendizagem versátil, dinâmica e abrangente e a diversificação das áreas de estudo, não servem unicamente para dificultar uma entrada no mercado do trabalho que tem, cada vez mais, necessidade de formação afunilada.
Para além de ser consensual que uma pessoa mais esclarecida é também um ser humano com maior consciência dos seus direitos e dos seus deveres, podemos assegurar que é também alguém que tem certezas absolutas sobre a não existência de dragões.
Podes dormir descansado João, o único monstro que provavelmente irá atacar será a tua consciência…
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